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Vamos falar de futebol? Interesse dos credores em jogo e a polêmica acerca da responsabilidade da SAF pelos débitos dos clubes

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Vamos falar de futebol? Interesse dos credores em jogo e a polêmica acerca da responsabilidade da SAF pelos débitos dos clubes

24/03/2022 / Publicações / POSTADO POR Fernanda Santiago e Gabriela Lima Nogueira

Por Fernanda Santiago e Gabriela Lima Nogueira 

Fim de jogo e o árbitro apita pela última vez: é 06 de agosto de 2021 e o país do futebol acaba de ganhar uma nova lei que regulamenta a chamada Sociedade Anônima do Futebol (“SAF”). Inspirada em ordenamentos jurídicos similares que regulamentam o futebol estrangeiro, a Lei nº 14.193/2021 (“Lei da SAF”), originada no PL nº 5.516/2019, de iniciativa do senador Rodrigo Pacheco, parece buscar consolidar o futebol brasileiro à estrutura que ele realmente representa: um mercado econômico altamente vantajoso, uma verdadeira empresa.

Apesar de ainda incipiente, a estrutura societária proposta pela Lei da SAF já foi adotada por alguns clubes de futebol brasileiros, tais como o Cruzeiro Esporte Clube, o Botafogo de Futebol e Regatas e o Clube de Regatas Vasco da Gama, e desde a sua promulgação, tem despertado acaloradas discussões em relação a alguns pontos polêmicos sob a ótica jurídica. Dentre os diversos aspectos em discussão, um dos que mais chama atenção e merece destaque diz respeito à sucessão das obrigações e responsabilidades dos clubes de futebol pela SAF.

Antes de adentrar ao tema da sucessão, cabe ressaltar, em uma análise preliminar, que a Lei da SAF prevê que a constituição da Sociedade Anônima de Futebol poderá se dar de 4 (quatro) formas. As 3 (três) primeiras vias, que estão definidas no artigo 2º da Lei da SAF, consistem na: (i) transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF, sendo necessária a adaptação do estatuto; (ii) cisão do departamento de futebol do clube ou da pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade de futebol à SAF; ou (iii) constituição por iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento. Por último, mas guardando seu lugar de importância, está o drop down, a quarta forma de constituição da SAF, prevista no artigo 3º da Lei da SAF, em que o próprio clube transfere a nova companhia os seus ativos para integralização do capital social, se tornando sócio da SAF.

Naturalmente, no que se refere à hipótese de constituição originária, não há que se falar em responsabilidade da SAF pelos débitos do clube enquanto associação, por tratar-se de uma nova organização, sem qualquer vínculo com o clube anterior. Com raciocínio semelhante, mas conclusão distinta, quando tratamos da transformação do clube em Sociedade Anônima do Futebol, estamos diante de uma hipótese de sucessão de todos os direitos e obrigações do clube, por tratar-se da mesma pessoa jurídica. 

A questão mais polêmica em relação à responsabilidade da SAF encontra seu ponto alto, contudo, na hipótese de cisão do departamento de futebol do clube. Isso porque, conforme previsto no artigo 9º da nova Lei, a SAF não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades de seu objeto social e na hipótese de cisão do departamento de futebol, em que a SAF responde apenas pelas obrigações que lhe forem transferidas na cisão. O artigo 9º prevê, ainda, que os pagamentos aos credores limitar-se-ão às regras de repasses de recursos da SAF ao clube. Em outras palavras, após a constituição da SAF por meio da cisão do departamento de futebol do clube, esta apenas responderá pelas obrigações relacionadas ao departamento de futebol que lhe foram transferidas, sendo que todas as demais obrigações do clube que não integram a parcela cindida e vertida para a SAF continuarão sendo de responsabilidade do clube, devendo ser pagas por meio do mecanismo de repasse de recursos previsto no artigo 10 da Lei.

Nesse contexto, não obstante a criação da SAF e a transferência dos bens, direitos e deveres relacionados ao departamento de futebol à nova companhia, o próprio clube permanece responsável pelas obrigações de pagamento contraídas anteriormente à constituição da SAF. Para realizar a quitação de tais obrigações, o clube poderá contar com receitas próprias e/ou com a arrecadação de receitas advindas da SAF na proporção de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela SAF e 50% (cinquenta por cento) dos lucros da SAF, na forma de dividendos, juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida na condição de acionista da nova companhia.

Ao se criar um mecanismo de repasse de recursos da SAF ao clube, o legislador parece ter buscado, de uma forma ou de outra, “garantir” que o clube, apesar de ter o seu departamento de futebol cindido e retirado do patrimônio da associação, pudesse continuar contando com os recursos decorrentes da exploração da atividade profissional de futebol, a qual passaria, então, a ser gerida pela SAF. Ocorre que este mecanismo de repasse de recursos não representa, na prática, qualquer tipo de garantia aos credores do clube. Isso porque, a mera alteração na estrutura societária e a entrada de um novo investidor na SAF não têm o condão, por si só, de garantir que o desenvolvimento da atividade de futebol será exitoso e irá gerar receitas ou lucros representativos, necessários para assegurar o equilíbrio financeiro das obrigações do clube.

A situação se agrava um pouco mais quando analisamos a forma de quitação das obrigações pelo clube de futebol após a constituição da SAF, pois a nova Lei prevê que ela poderá ser feita por meio do (i) pagamento pelo clube das obrigações diretamente aos seus credores, em concurso de credores instaurado por meio do Regime Centralizado de Execuções (“RCE”) ou da (ii) recuperação judicial ou extrajudicial (artigo 13, incisos I e II da Lei da SAF). No primeiro caso, todas as execuções, receitas e valores arrecadados pelo clube por meio do repasse de recursos da SAF serão concentrados em um mesmo juízo centralizador e os valores serão pagos aos credores em concurso e de forma ordenada, em um prazo de até 6 (seis) anos, nos termos do plano de credores apresentado pelo clube no início do RCE. A Lei da SAF concede ao clube, ainda, a prerrogativa de extensão do prazo para pagamento de suas dívidas para 10 (dez) anos e redução do percentual de repasse de receitas de 20% (vinte por cento) para 15% (quinze por cento), caso o clube comprove que está adimplente com ao menos 60% (sessenta por cento) de suas obrigações ao término do prazo inicial de 6 (seis) anos.

Ora, estamos aqui falando de um prazo total de 10 (dez) anos para pagamento de dívidas constituídas pelo clube antes mesmo da criação da SAF, em um cenário que, durante esse período de tempo, “garante” aos credores do clube apenas 20% (vinte por cento) das receitas e 50% (cinquenta por cento) dos lucros da SAF. O “garante” é, sim, entre aspas, pois conforme dito anteriormente, a constituição da SAF e o investimento por novos investidores não é sinônimo de crescimento, geração de receitas ou lucros decorrentes da exploração a atividade do futebol. Vale ressaltar aqui que, apenas após decorrido o prazo acima mencionado sem a quitação integral dos débitos, é que a SAF responderá, subsidiariamente, pelo pagamento das obrigações civis e trabalhistas do clube anteriores à sua constituição. Em termos práticos, ainda nesta hipótese, a responsabilização da SAF está condicionada ao exaurimento de todos os meios de cobrança diretamente do clube, uma vez que se trata de responsabilidade subsidiária, e não solidária.

A nova legislação apresenta, portanto, grandes desafios em sua aplicação prática, uma vez que não segue a regra geral de sucessão societária e até mesmo conflita com outras disposições legais – a exemplo da legislação trabalhista. 

É cediço que o Decreto-Lei nº 5.452/1943 (“CLT”) estipula preceitos em seus artigos 10, 448 e 448-A, no sentido de assegurar os direitos adquiridos aos trabalhadores, independentemente de qualquer alteração na propriedade ou estrutura societária da pessoa jurídica empregadora, o que parece ter sido relativizado em larga escala pela Lei da SAF. Nesta seara, são igualmente diversas as discussões a respeito da proporcionalidade, do equilíbrio e até mesmo da legalidade da nova Lei da SAF, no que diz respeito à limitação de sua responsabilidade por obrigações anteriores do clube, apenas em caráter subsidiário e após o prazo concedido ao clube no âmbito do RCE para quitação de suas dívidas.

Do ponto de vista trabalhista, certamente o tema será muito discutido nos Tribunais, especialmente nos casos dos contratos de trabalho dos empregados que permanecerem vinculados ao clube, e não forem transferidos à SAF. 

Sem sombra de dúvidas, a hipótese de cisão do departamento de futebol para constituição da SAF surge como alternativa altamente conveniente no caso de clubes endividados com obrigações trabalhistas, previdenciárias e cíveis, notadamente aquelas não vinculadas especificamente à atividade e ao departamento de futebol, na medida em que estas não serão, por absoluto, transferidas e sucedidas pela SAF.

Nesse cenário, inevitável é mencionar o clube pioneiro na constituição da SAF no Brasil, o Cruzeiro Esporte Clube (“Cruzeiro”) que tem enfrentado há alguns anos uma grave crise financeira, recentemente optou pela constituição da SAF por meio da cisão do seu departamento de futebol, buscando uma solução viável para se manter no mercado da bola. A SAF constituída pelo Cruzeiro já foi objeto, inclusive, de acordo de intenções para realização de investimento por ninguém menos que o ex-jogador de futebol, Ronaldo Luís Nazário de Lima – o Ronaldo Fenômeno. 

Em pouco tempo desde a celebração do acordo de intenções, Ronaldo, na condição de potencial futuro acionista majoritário da SAF Cruzeiro, já tem experimentado cobranças em seu nome, decorrentes de dívidas do clube anteriores à cisão. Especificamente no episódio relacionado ao ex-goleiro do clube, Fábio Deivson, foi levantada até mesmo a suspeita de fraude à execução e prejuízo aos credores por parte da SAF, ao ser verificado o pagamento, por Ronaldo, de dívidas do Cruzeiro com a Fifa, em detrimento de débitos trabalhistas e contratuais do clube. Não nos cabe aqui adentrar na discussão a respeito da inclusão de Ronaldo no polo passivo das demandas – até mesmo porque ele ainda não se tornou efetivamente um acionista da SAF, mas a ideia é reforçar que esse tipo de reclamação por parte de credores dos clubes poderá se tornar recorrente com a criação de SAFs pelos clubes de futebol brasileiros por meio de cisão.

Não há dúvidas, portanto, de que o real intuito da Lei da SAF foi o de atrair e viabilizar o investimento por terceiros nos clubes de futebol, sem, todavia, recair sobre os investidores toda a responsabilidade pelas dívidas anteriores do clube. No entanto, a estruturação da responsabilidade e sucessão das obrigações proposta pela nova Lei da SAF tem atraído olhares atentos da comunidade jurídica, especificamente para o fato de apresentar um aparente desequilíbrio entre os benefícios para o clube e os investidores, de um lado, e para os credores, de outro lado, os quais sequer têm a prerrogativa de anuir com a transferência do patrimônio dos clubes à nova SAF no caso da cisão.

Fato é que a SAF parece ter benesses não experimentadas por outros setores empresariais (nem mesmo por outros esportes profissionais), já que apenas compromete parte de suas receitas para o pagamento de passivos anteriores do clube de futebol, o que poderá ser realizado em longo prazo, além de não responderem solidariamente e não sofrerem com a constrição de bens. Por outro lado, a SAF se apresenta como uma ferramenta para resolver um problema estrutural que afeta todo o mercado de futebol, favorecendo o soerguimento dos clubes, sobretudo se adotadas as providências para que o equilíbrio financeiro e de gestão dos clubes acompanhem a alteração societária. Esta posição se sustenta com base na inequívoca função social dos clubes de futebol e na representatividade que eles possuem enquanto atividade econômica nacional de grande relevância.

Diante disso, seja qual for o futuro da Sociedade Anônima do Futebol no país, o Poder Judiciário deverá estar preparado para enfrentar os desafios decorrentes da aplicação prática da Lei da SAF, que, como toda legislação nova – e inovadora – precisará contar com a expertise dos aplicadores do Direito a fim de se formar entendimento sobre os seus mais diversos aspectos polêmicos. Resta saber se os juízes, assim como os bons árbitros de jogo, reafirmarão o gol das SAFs, reconhecendo o seu direito posto de não se responsabilizar pelos débitos anteriores do clube ou chamarão o VAR para avaliar a nova Lei e confirmar impedimento na jogada, visando preservar os interesses dos credores em detrimento do investimento no mercado do futebol, e preservar a isonomia de tratamento entre a SAF e as demais espécies de sociedade empresárias no ordenamento brasileiro.

Referências

BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em:15 mar. 2022.

BRASIL. Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm. Acesso em: 15 mar. 2022.

BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14193.htm. Acesso em: 15 mar. 2022.

A Sociedade anônima de futebol e suas nuances. Reflexões iniciais acerca da entrada em vigor da Lei nº 14.193/202. Disponível em: https://ibdd.com.br/a-sociedade-anonima-de-futebol-e-suas-nuances-reflexoes-iniciais-acerca-da-entrada-em-vigor-da-lei-n-14-193-2021/. Acesso em: 15 mar. 2022. 

Cruzeiro: relator da lei da SAF vê como ‘natural’ notificação de Fábio a Ronaldo. Disponível em https://www.itatiaia.com.br/noticia/cruzeiro-relator-da-lei-da-saf-ve-como-natural-notificacao-de-fabio-a-ronaldo. Acesso em: 15 mar. 2022. 

Sociedade Anônima de Futebol: Contornos e Atipicidades. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/354088/sociedade-anonima-de-futebol-contornos-e-atipicidades. Acesso em: 15 mar. 2022.

O regime de centralização de execuções na Lei da SAF: a SAF como pressuposto. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/meio-de-campo/354992/o-regime-de-centralizacao-de-execucoes-na-lei-da-saf. Acesso em: 15mar. 2022.

*O texto reflete a opinião das autoras e não representa o LexUniversal.


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