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Reparação de danos concorrenciais: a promissora Lei 14.470/2022

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Reparação de danos concorrenciais: a promissora Lei 14.470/2022

12/12/2022 / Publicações / POSTADO POR Jota

Em 17/11/2022 foi publicada a Lei 14.470/2022, que modifica a Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência – LDC) em aspectos relativos à reparação de danos concorrenciais. Embora a possibilidade de reparação desses danos fosse consequência da própria legislação civil e contasse, ainda, com um artigo específico na LDC (tanto na lei atual, quanto na anterior – Lei 8.884/1994), diversos trabalhos acadêmicos reconheciam que os incentivos para essa tutela reparatória eram insuficientes. Esse reconhecimento era reforçado pela pequena quantidade de ações de reparação de danos concorrenciais (ARDCs) propostas desde a edição da Lei 8.884/1994.

A reparação dos danos causados por infrações à ordem econômica, por meio das ARDCs, é essencial para o pleno desenvolvimento do direito da concorrência. Quando empresas organizam um cartel, elas são capazes de cobrar mais caro por seus produtos. Esse sobrepreço, suportado pelos consumidores, configura um dano concorrencial que precisa ser reparado. Se isso não acontece, por melhor que seja a atuação do Cade em defesa da concorrência, há grandes chances de que os membros do cartel lucrem com o seu comportamento ilícito. Com efeito, ainda que haja a imposição de multa, ela possui baixa efetividade se não houver também a reparação do dano: sozinha, a multa não costuma superar os benefícios obtidos com a conduta anticompetitiva – o que incentiva novos comportamentos anticoncorrenciais. Para reverter esse cenário, os cartelistas devem ser obrigados a devolver o que obtiveram ilicitamente, de modo a assegurar que a multa tenha efetivamente um caráter punitivo e desincentive práticas ilícitas.

Embora a importância dessa atuação conjunta entre o Cade (public enforcement, com a imposição de multa) e os prejudicados (private enforcement, com a busca pela reparação dos danos) seja amplamente reconhecida, a propositura de ARDCs no Brasil enfrenta um conjunto de obstáculos. Entre eles, destacam-se as alegações feitas pelos réus-infratores de prescrição e de repasse do sobrepreço pelos prejudicados. Felizmente, as alterações introduzidas pela Lei 14.470/2022 contribuem para mudar esse cenário, mitigando esses problemas e criando incentivos para a propositura de ARDCs.

Em relação à prescrição, diversos julgados aplicavam o prazo de 3 anos (responsabilidade extracontratual) e consideravam como termo inicial o momento em que o ilícito havia sido cometido. Além de ignorar que as infrações à ordem econômica são ocultas e que dificilmente o prejudicado sabe de sua ocorrência – o que em geral ocorre apenas com a decisão final do Cade –, esse entendimento contrariava a jurisprudência pacífica do STJ, no sentido de que, nos casos de responsabilidade extracontratual, o prazo prescricional inicia apenas com a ciência inequívoca do dano. Progressivamente, o entendimento correto, de que o prazo prescricional não se inicia até a decisão final do Cade, passou a prevalecer, e a Lei 14.470/2022 consagra esse entendimento por meio do art. 46-A, LDC, um dispositivo de caráter interpretativo que se aplica a todos os casos – inclusive àqueles em que há litispendência (naqueles em que houve trânsito em julgado, o dispositivo reforça o cabimento de rescisória por manifesta violação de norma jurídica – art. 966, V, CPC). Além disso, a Lei 14.470/2022 unifica o prazo prescricional, que antes era de 3 anos para as ações individuais e de 5 para as coletivas, e agora passa a ser de 5 anos para todos os casos.

Em relação ao repasse do sobrepreço ao longo da cadeia produtiva, a Lei 14.470/2022 também traz suas contribuições. O argumento do repasse é frequentemente utilizado pelos infratores para impedir a recuperação dos valores cobrados a maior de compradores diretos, alegando que estes repassaram o prejuízo aos seus consumidores. Nesse caso, reconhecida a infração e o sobrepreço, o sucesso da alegação de repasse permite ao infrator permanecer com o produto do ilícito, apostando na falta de coordenação dos demais agentes da cadeia produtiva e na ocorrência da prescrição. Ainda que esse problema não seja propriamente resolvido pela nova lei, ele é mitigado com a previsão de que o repasse do sobrepreço não pode ser presumido (art. 47, § 4º, LDC). Bem verdade que o art. 373, II, CPC, é claro ao estabelecer que o ônus da prova do repasse, enquanto fato modificativo, é do réu-infrator; contudo, diversas decisões acabavam invertendo o ônus e presumindo a ocorrência do repasse: se o autor não provasse que ele não ocorreu, a ARDC era julgada improcedente. A regra específica prevista na Lei 14.470/2022, ainda que não modifique a legislação vigente, contribui para a adequada interpretação do art. 373, II, CPC.

Sob a perspectiva processual, a nova lei também ataca a morosidade na concessão de tutela ao prejudicado por ilícitos concorrenciais. Das poucas ARDCs que foram propostas, muitas, a despeito de estarem baseadas em decisões condenatórias do Cade, tramitam há quase uma década sem atingir a fase instrutória. Esse problema é combatido pela Lei 14.170/2022, que prevê a concessão de tutela da evidência em caráter liminar a favor dos prejudicados quando houver decisão condenatória do Cade (art. 47-A, LDC). Nesse caso, se a petição vier acompanhada de provas documentais ou documentadas que demonstrem o valor do prejuízo sofrido e o nexo causal deste com a infração à ordem econômica reconhecida pelo Cade, o prejudicado faz jus à tutela da evidência. O grande incentivo oferecido por essa previsão, que inverte o ônus da demora processual, é equilibrado com a responsabilidade objetiva a que se sujeita o prejudicado caso a decisão seja revertida: não há espaço para aumentar o pedido reparatório para além daquilo que é efetivamente devido.

Além disso, a Lei 14.470/2022 prevê, de forma generalizada, o dever de ressarcimento em dobro pelos infratores (art. 47, § 1º, LDC). Esse instrumento já era aplicável aos danos concorrenciais por força do CDC, mas se limitava aos prejuízos sofridos por consumidores finais. Com a mudança, todos que sofrerem prejuízos em decorrência de infração à ordem econômica passam a ter direito a recuperar dos infratores o dobro do que perderam. Trata-se, por um lado, de incentivo relevante para que os lesados busquem a reparação dos prejuízos sofridos e, por outro, de solução que evidencia o desvalor atribuído pelo ordenamento jurídico a infrações à ordem econômica.

Ao mesmo tempo, a Lei 14.470/2022 procura prestigiar os acordos de leniência e os Termos de Compromisso de Cessação (TCCs) celebrados entre o Cade e supostos infratores ao prever que os signatários desses acordos não se sujeitam à reparação em dobro (art. 47, § 2º, LDC), tampouco respondem solidariamente pelos prejuízos causados (art. 47, § 3º, LDC). Somados, esses benefícios reduzem significativamente o risco de que os infratores que celebrarem acordos com o Cade paguem indenizações superiores ao benefício auferido.

Por fim, o destaque negativo da Lei 14.470/2022 é o veto da previsão de que os TCCs deveriam incluir a obrigação do signatário de se submeter à arbitragem voltada à reparação de danos concorrenciais. A convenção de arbitragem – que seria obrigatória para o signatário do TCC, mas opcional para o lesado – seria uma importante contribuição para a celeridade e qualidade técnica das decisões proferidas em ARDCs. De todo modo, apesar do veto, ainda é possível que essa solução venha a ser adotada por meio de resolução normativa do próprio Cade.

Diante do exposto, vê-se que a Lei 14.470/2022 promove avanço significativo para a reparação dos danos concorrenciais. Assim, ainda que a propositura de ARDCs continue sendo uma tarefa complexa – a exigir conhecimentos profundos de antitruste e processo civil –, caso a referida Lei seja corretamente aplicada, ela representará um divisor de águas: um passo decisivo para que os prejuízos sofridos em decorrência de condutas anticompetitivas, em especial os causados por cartéis, sejam adequadamente reparados, reforçando o private enforcement no Brasil.

*O texto reflete a opinião dos autores e não representa o LexUniversal. 

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