Apontamentos sobre a legalidade da cessão de crédito de precatório
Recentíssima decisão proferida, em 17/4/2023, pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.896.515, trouxe à tona a discussão sobre a validade de cessão a terceiro de crédito inscrito em precatório. Por força da Constituição, em seu artigo 100, as dívidas contra a Fazenda Pública (União, estados, municípios, autarquias e fundações) decorrentes de sentenças judiciais transitadas em julgado deverão ser pagas por ordem cronológica de apresentação dos precatórios.
A discussão jurídica é se o crédito inscrito em precatório pode ser objeto de cessão a terceiros, isto é, é lícito ao credor ceder a terceiro, em negócio jurídico oneroso, o crédito constante de precatório? O poder público pode ser compelido a pagar diretamente ao terceiro por força da cessão de crédito, independentemente da sua prévia anuência?
Inicialmente, há a disciplina constante do Código Civil, em seu artigo 286, segundo a qual o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor.
Tradicionalmente, entende-se que, em se tratando de créditos provenientes de condenações judiciais, existe permissão legal, assegurando a cessão dos créditos traduzidos em precatórios, não se exigindo condicionar a cessão ao consentimento do devedor, por força do princípio constitucional da impessoalidade (RMS 12.735, relator ministro Humberto Gomes de Barros), e que a sistemática legal do Código Civil permite a cessão de crédito de precatório, independentemente de anuência do poder público (AgRg no Ag 647.684, rel. min. Fernando Gonçalves).
Diante do fato público e notório do atraso no pagamento pelo Poder Público de suas dívidas constantes de precatórios, uma das alternativas — para abreviar os efeitos deletérios — vem a ser a iniciativa de os credores se valerem de negócios jurídicos onerosos de cessão de créditos, nos quais se transmite a terceiro o crédito em contrapartida do recebimento do valor com deságio.
Existe previsão constitucional no artigo 100, §§13 e 14, com a redação conferida respectivamente pelas Emendas Constitucionais 62/2009 e 113/2021, assegurando que o titular de créditos inscritos em precatório pode cedê-los a terceiros sem a necessidade de anuência da Fazenda Pública, sendo a produção de efeitos do negócio jurídico condicionada apenas à comunicação ao tribunal de origem e à entidade devedora.
No mesmo sentido, a Resolução nº 303/2019 do Conselho Nacional de Justiça, em seu artigo 42, preceitua que o beneficiário poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos a terceiros, independentemente da concordância da entidade devedora, cabendo ao presidente do tribunal providenciar o registro junto ao precatório.
Segundo o voto da ministra Regina Helena Costa no mencionado REsp 1.896.515, a cessão de créditos inscritos em precatórios permite ao credor, mediante negociações entabuladas com eventuais interessados na aquisição do direito creditício com deságio, a percepção imediata de valores que somente seriam obtidos quando da quitação da dívida pelo poder público, cujo notório inadimplemento fomenta a instituição de mercado dos respectivos títulos.
A referida conclusão está em sintonia com a orientação do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual a cessão de crédito não implica a alteração da sua natureza, chancelando-se a legalidade da cessão do crédito inscrito em precatório (Tema 361/STF), e o crédito inscrito no precatório, em que tenha havido a cessão de crédito, pertence ao terceiro e não ao credor originário (ARE 1.390.590, rel. min. Alexandre de Moraes).
A rigor, a partir da autorização constitucional admitindo a cessão de créditos inscritos em precatórios, não se admite que norma de inferior hierarquia possa restringir a sua aplicabilidade, dentro da máxima de se emprestar a maior eficácia a dispositivo constitucional (RE, rel. min. Ricardo Lewandoski).
Portanto, à luz do texto constitucional em vigor e da orientação jurisprudencial do STF e do STJ, conclui-se que o crédito inscrito em precatório pode ser objeto de cessão a terceiros, independentemente de anuência do poder público, bastando a ciência do tribunal de origem e da entidade pública devedora.
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