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Alienação fiduciária, STJ e a discussão sobre constituição em mora do devedor

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Alienação fiduciária, STJ e a discussão sobre constituição em mora do devedor

17/05/2022 / Publicações / POSTADO POR Jota

O ano começou aquecido para os profissionais que atuam na esfera consumerista. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu o andamento de boa parte das ações de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente — quando o devedor transfere a propriedade de seu bem ao credor (fiduciário) até o pagamento total da dívida.

O pano de fundo da decisão? A controvérsia sobre a necessidade de a notificação ser assinada pelo próprio devedor para constituí-lo em mora.

Nos contratos garantidos por alienação fiduciária, caso haja mora do devedor, o credor pode vender a coisa a terceiros, no intuito de se ver ressarcido. Para tanto, deve, em primeiro lugar, comprovar a mora e promover a ação de busca e apreensão.

Quanto à comprovação da mora — requisito para a busca e apreensão do bem —, o art. 2º, § 2º, do Decreto-Lei nº 911/1969, diz que: “A mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento e poderá ser comprovada por carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário”.

E é justamente sobre a interpretação deste dispositivo que recai a dúvida.

Vale apontar que a 3ª e 4ª Turmas do STJ têm decidido repetidamente que a demonstração da mora pode ser feita “por simples carta registrada com aviso de recebimento” e que, “em nenhuma hipótese, exige-se que a assinatura do aviso de recebimento seja do próprio destinatário”. Ou seja, a assinatura não precisa ser pessoal do devedor — basta que a instituição financeira expeça a correspondência para o endereço que conste do contrato e que o aviso de recebimento volte assinado, por quem for.

Disso decorrem, porém, duas divergências, que vêm sendo decididas de maneiras distintas pelos tribunais em segunda instância: (i) hipótese em que a notificação é enviada pelo credor ao endereço constante do contrato com garantia de alienação fiduciária, e ninguém a recebe (por motivos “ausente”, “mudou-se” etc.); e (ii) hipótese na qual o credor envia a notificação ao endereço que consta do contrato, e o aviso de recebimento é assinado por outra pessoa, que não o devedor.

Diante da dúvida generalizada e da enorme quantidade de recursos especiais tratando sobre o tema, o STJ avocou a responsabilidade para si de pacificar a questão, mediante a chamada afetação para julgamento de recursos representativos da controvérsia. Foram selecionados, então, o REsp 1.951.888/RS, interposto pelo Banco RCI, e o REsp 1.951.662/RS, interposto pelo Banco Aymoré, como manda a lei processual.

No primeiro caso (REsp 1.951.888), o TJRS havia entendido, em apelação, que não houve constituição do devedor em mora porque “a carta não foi entregue ao destinatário pelo motivo ‘ausente’”. Já no segundo caso (REsp 1.951.662), o mesmo TJ-RS também havia decidido, ao julgar a apelação, que a notificação “foi enviada para o endereço constante no contrato”, mas que “restaram inexitosas as três tentativas de entrega”, concluindo que “não restou comprovada a constituição da mora, porquanto a notificação deixou de ser entregue no endereço declinado pelo fiduciante”.

Pela leitura da questão submetida a julgamento, sobretudo por sua parte final, entende-se que o STJ pretende pacificar a seguinte dúvida: a assinatura do aviso de recebimento é necessária, e ponto. Mas ela (a assinatura) precisa ser, necessariamente, “do próprio destinatário”, isto é, do devedor?

Olhando o tema e a controvérsia em perspectiva, não parece ser nada razoável considerar que a assinatura aposta no aviso de recebimento deva ser, necessariamente, a do devedor.

Aliás, admitir esse entendimento é ferir de morte não apenas o regramento a esse respeito contido no Decreto-Lei nº 911, de 1969, mas toda a sistemática do Código de Processo Civil Brasileiro (CPC) atual — que nos capítulos afetos à execução procurou abarcar o princípio da efetividade — e, ainda, e principalmente, o próprio Código de Defesa do Consumidor, que tem por premissa a boa-fé do fornecedor e consumidor.

Especificamente em relação à efetividade, imperioso relembrar que o direito, além de ser reconhecido, deve ser efetivado, devendo existir meios capazes de propiciar pronta e integral satisfação a qualquer pessoa que seja titular do seu direito.

Nesse passo, e com o devido respeito a entendimentos contrários, exigir, para a configuração da mora, que o devedor pessoalmente assine o documento é criar, para o credor, mais um óbice à satisfação do seu direito.

Não estamos aqui dizendo que a mora não deva ser configurada e que o devedor não deva ser devidamente intimado.

Mas o que não podemos admitir é a utilização de situações excepcionais como base para definir a criação de uma regra geral, notadamente quando o nosso sistema legal já está preparado para acolher as excepcionalidades.

Além das questões da efetividade e da excepcionalidade, há também um outro aspecto legal de relevância, qual seja, a boa-fé que deve ser impingida às relações consumeristas, seja por parte do fornecedor, seja do consumidor.

Lembramos que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) está estruturado com base em alguns princípios, entre eles o da boa-fé na formação e execução das relações contratuais, aí compreendido pelo valor da ética, veracidade e correção dos contratantes, operando de diversas formas e em todos os momentos da avença.

E essa atuação de boa-fé deve ser refletida, como ensina a professora Claudia Lima Marques: “Um pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando os seus legítimos interesses, seus direitos, agindo com lealdade e sem abuso da posição contratual e sem causar lesão ou desvantagem legítima”.

Ora, se de um lado a existência de uma dívida é objetiva (e o consumidor devedor sabe que deve) e do outro a necessidade de configurar a mora é objetiva também (o fornecedor credor conhece os meios de fazê-lo), adicionar um grau de dificuldade à equação é, além de beneficiar o devedor, desequilibrar a lógica legal.

Falando ainda sobre a boa-fé, também não podemos perder de vista as regras trazidas pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que garante ao consumidor o direito de a qualquer momento atualizar os seus dados, faculdade essa que, nas relações contratuais, deve ser vista como obrigação e não mera faculdade, elemento a mais a advogar a favor da tese de que a intimação feita no endereço declinado pelo devedor/consumidor com carta de aviso recebimento é mais do que suficiente a configurar a sua mora.

Para colocar uma pá de cal na discussão, é imperioso relembrar que a concessão de crédito no Brasil é essencial para a geração de empregos, aumento da renda e crescimento econômico, além desempenhar importante papel na disseminação da política monetária estabelecida pelo Banco Central.

Nesse sentido, a se prevalecer o injusto e desequilibrado entendimento de que a mora para se configurar deverá demandar a assinatura do consumidor devedor na correspondência — o que realmente não se espera — criará um efeito reverso e indesejado aos contratos de crédito, em prejuízo ao próprio consumidor.

*O texto reflete a opinião dos autores e não representa o LexUniversal. 


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