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NFTs e Propriedade Intelectual

*Por Juliana Gebara Sene S. Ikeda e Gabriela S. Mussalam 

O que são NFTs e como surgiram?

A tendência global da digitalização de ativos impulsionou a criação de diversos bens no mundo virtual, como as criptomoedas (o Bitcoin, entre outras), tokens fungíveis e tokens não fungíveis (os “NFTs” objeto deste artigo – em inglês, non-fungible tokens). O uso desses ativos digitais para realizar transações monetárias está gerando um relevante impacto na economia global, afetando não somente o setor financeiro, mas também outros setores como educação, serviços e até artes, como será aqui abordado. 

Em primeiro lugar, é valido expor brevemente como surgiram os referidos ativos digitais, que derivam da criação da tecnologia de “cadeia de blocos” (“Blockchain”, no termo original em inglês) em 2008. A tecnologia Blockchain é, de maneira simplificada, um banco de dados compartilhado e imutável, que armazena desde informações relativas a transações comerciais de uma rede de negócios em blocos, como pedidos, pagamentos, contas, valores, até contratos e outros recursos. Isto é, uma espécie de plataforma onde somente os participantes da rede possuem acesso às informações contidas nos blocos, que são imutáveis. Portanto, para a alteração de determinado dado, é necessária uma nova transação contida em um novo bloco, interligado. É a partir desta tecnologia que surgem as suas aplicações no mundo digital, como os NFTs.

Os NFTs ou tokens não-fungíveis são ativos digitais únicos e insubstituíveis, armazenados pela tecnologia Blockchain, que representam um bem específico do mundo real no ambiente virtual, podendo ser uma foto, vídeo, música ou até uma obra de arte. Cada NFT corresponde a um ativo digital vinculado ao token com valor agregado e possui certificado de autenticidade, que permite identificar o seu proprietário. O mercado de NFTs gerou expressivo impacto econômico globalmente e, atreladas ao crescimento dos ativos digitais, surgem as consequências práticas e jurídicas das transações desta natureza, no que tange à proteção dos direitos de propriedade intelectual e segurança jurídica atribuídas às operações com NFTs. 

NFTs e Direitos de Propriedade Intelectual

Embora qualquer pessoa ou entidade possa criar um NFT para representar desde um bem imóvel até empréstimos, os grandes protagonistas do mercado digital são as obras de arte digitais e artigos colecionáveis. A possibilidade de se tornar proprietário de uma obra famosa na Internet tornou o mercado de NFTs atrativo tanto para criadores quanto para colecionadores e tem movimentado bilhões de dólares[1]. 

Ocorre que no mundo “real”, esse tipo trabalho é, em regra, protegido pelo Direito do Autor – seriam os NFTs igualmente protegidos? Em nosso entendimento sim – a maior parte dos NFTs é passível de proteção pelo direito autoral (como desenhos e vídeos, por exemplo). O maior problema é definir qual a lei aplicável.

No mundo “real” existem leis nacionais sobre o tema (no Brasil, a Lei No. 9.610/98), além da Convenção de Berna, que garante direitos mínimos aos autores e é aplicada em 172 países. Todavia, no mundo virtual, sem fronteiras claras, qual lei prevaleceria? Esse tipo de incerteza vem gerando um debate global intenso para os profissionais do direito. Não há qualquer definição – muito vai depender dos futuros casos concretos.

Além desta problemática, há a questão da necessidade ou não de se comprovar a origem, autenticidade e veracidade de um NFT. Vejam, para a proteção do direito autoral, a comprovação de anterioridade é essencial. No entanto, na prática, é possível obter uma cópia do ativo representado pelo token digital com um simples “print”, em caso de obra de arte ou imagem. Como então confirmar que é o criador / autor do ativo?

O comprador de um NFT que representa uma obra de arte, por exemplo, “não está adquirindo a obra digitalizada em si, mas sim o link onde a arte está armazenada em seu formato digital, que muitas vezes está hospedado no website de uma nova startup que poderá falir em alguns anos”, na declaração de um dos criadores originais de NFT, Anil Dash[2]. 

Não obstante, apesar das incertezas sobre a anterioridade / originalidade da obra, existem muitos interessados na compra de NFTs, como forma de investimento no mundo virtual, ainda que o adquirente do NFT só possa explorar patrimonialmente[3] esse seu novo ativo da forma permitida pelo autor da obra original. Esse último, por sua vez, poderá autorizar seu uso com restrições relevantes (por exemplo, proibir sua reprodução em determinadas plataformas), através dos contratos inteligentes (“smart contracts”, termo original em inglês), que estabelecem os termos de uso do token.

Disputas entre Ativos Convencionais versus Digitais 

Além das implicâncias atinentes à proteção dos direitos autorais nas transações de obras digitais, também se encontra como alvo de controvérsia a proteção de outros direitos de propriedade intelectual convencionais, como os direitos inerentes à marca comercial, por exemplo. O artista Mason Rothschild criou uma coleção de cem NFTs das bolsas “Birkin” da marca de grife Hermés, denominada “MetaBirkin”. A coleção de NFT consistia em uma variedade de bolsas Birkin Hermés reinventadas, em parceria com o artista Eric Ramirez. A Hermés ajuizou ação contra Rothschild em Nova Iorque, com base na violação da marca comercial “Birkin”. Em sua defesa, o artista afirmou que as “MetaBirkins” são obras originais inspiradas em um trabalho anterior feito por ele também em colaboração com Ramirez e citou alguns casos de marcas incorporadas em obras de artes originais[4]. 

Outro caso recente foi a ação ajuizada pela empresa Nike perante a Corte Federal de Nova Iorque, no início de fevereiro de 2022, contra a plataforma de marketplace StockX. A Nike quer proibir a plataforma de criar e comercializar NFTs com a marca “Nike”, prometendo aos compradores uma futura troca dos ativos digitais por pares de tênis originais da marca. A Nike ainda não se pronunciou publicamente sobre o caso, mas afirmou em sua reclamação que “os produtos comercializados podem confundir os consumidores, criando uma falsa associação entre estes e os produtos Nike, denegrindo as famosas marcas Nike” (atos de concorrência desleal). 

Assim, embora as duas ações estejam em seu estágio inicial, há de se ressaltar que essas disputas, apesar de baseadas em ativos virtuais, utilizam argumentos e leis aplicáveis à propriedade intelectual tradicional. 

Regulamentação Internacional e Nacional

Por enquanto a regulamentação de NFTs é quase inexistente no mundo. Alguns países, como o Reino Unido e a Austrália, para fins tributários, reconhecem que a venda e/ou licença de NFTs pode gerar royalties ao seu criador. Além disso, a legislação australiana com relação ao imposto de renda prevê a aplicação do mesmo regime atribuído às criptomoedas.

No Brasil, ainda não há normas específicas sobre o assunto, mas, considerando a sua base de blockchain, assim como as criptomoedas, alguns tributaristas já pronunciaram que as regras para NFTs deveriam ser análogas às das criptomoedas . Por outro lado, o mais recente Projeto de Lei sobre criptomoedas no país é omisso com relação às NFTs .

A aplicação de regras tributárias similares para NFTs e criptomoedas parece ser uma tendência mundial. Além dos exemplos já citados, os Estados Unidos da América também estão seguindo esse caminho . No entanto, para surpresa de alguns, a União Europeia excluiu expressamente os NFTs das normas sobre criptomoedas (Market in Crypto-Assets - MiCa)  que estão em debate.

Além disso, os tratados internacionais sobre propriedade intelectual não fazem referência ao mundo virtual em geral. Consequentemente, as legislações nacionais também são omissas sobre o tema.

Com base no exposto, é inegável que a regulamentação dos NFTs ainda está em aberto. Apesar de ser possível realizar diversos paralelos com outros bens do mundo “real” e do mundo virtual, somente o avanço dos casos concretos é que trará respostas aos investidores e criadores de NFTs.  

[1] Artigo disponível em Venda de NFTs em 2021 movimenta quase US$ 25 bilhões globalmente - TecMundo. Acesso em 24/02/2022.

[2] Artigo publicado em 2 de abril de 2021, na revista americana The Atlantic, com o título original em inglês "NFTs Werent Supposed to End Like This”, na tradução literal em português, “NFTs não deveriam terminar assim”.

[3] O comprador só pode adquirir os direitos patrimoniais sobre a obra. A titularidade da obra em si, como direito autoral moral, é do criador / autor da obra original.  Assim, cabe ao criador / autor delimitar o tipo de uso do NFT. 

[4]  Disputa Rogers vs. Grimaldi (1989)

Referências

Podcast The Legal Room UK - Episode Intellectual Property Law and NFTs (Non-fungible tokens).

NFTs: What They Are, How They Work, and What They’re Being Used for – Stably | Power your business with our Stablecoin Solutions.

Who owns the intellectual property rights of NFTs? (keystonelaw.com).

The History of NFTs & How They Got Started (portion.io).

What is Blockchain Technology? - IBM Blockchain | IBM.

NFT, do hype ao risco: o que significa comprar um ativo não fungível? - Época Negócios | Filosofia.com (globo.com).

The ‘MetaBirkin’ and the Beginning of Trademark Litigation in the NFT Space - Cardozo AELJ.

Nike Files Trademark Suit Against StockX; Are NFTs Under Lawsuit Radar? (coingape.com).

Income tax treatment of non-fungible tokens | Australian Taxation Office (ato.gov.au)

*O texto reflete a opinião das autoras e não representa o LexUniversal.

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